Aqui tem um bando de loucos! Mas só um pode dizer que é louco de carteirinha. Louco, daqueles que babam, trançam as pernas, não falam, e andam de ônibus sem pagar. A incrível história de Wallace renderia um filme premiado: drama, comédia, aventura e suspense misturados. Um personagem real, que nasceu no interior da Bahia, só tinha água uma vez por mês, dormiu numa cama de pedra, quase morreu de pneumonia na infância, falsificou carteirinha de maluco e (ele jura!), até hoje, só beijou uma mulher na vida: sua esposa.
Quem viu o zagueiro comemorar seu gol no empate contra o Santos, no último fim de semana, nem imagina que durante a entrevista, ele chegou a explicar que não é uma pessoa ruim, mas raramente se deixa emocionar. Diz que o futebol o tornou mais duro. Na verdade, a vida o calejou, desde o nascimento, um dia após o Natal, em Conceição do Coité, município atingido pela seca que afetava o trabalho do pai com o sisal, planta cuja fibra é usada na indústria de cordas.
“Nunca imaginei enfrentar o David num Mundial, pelo Corinthians. Vai ser marcante representar essa nação. Conceição do Coité toda vai torcer pelo Corinthians”
A família de Wallace chegava a passar mais de seis meses sem ver a chuva, situação que os obrigava a ficar em casa pelo menos em um dia do mês: o dia da água.
– A distribuidora abria o registro uma vez por mês, e todo mundo tinha que guardar até o mês seguinte. Aquela era a água para todas as necessidades – lembra o jogador.
No único quarto da pequena casa que Wallace dividia com pai, mãe e irmã, ele dormia numa cama de pedra. O colchão, na verdade, era um amontoado de lençóis. Até que a família se mudou para o Rio de Janeiro, onde o pai trabalharia como frentista. Wallace saiu da pedra para o chão de um úmido dormitório alugado. Não havia saúde que resistisse, e o menino teve pneumonia por três invernos seguidos. No último, internado em estado delicado.
– Eu tive para morrer, fiquei um ano tomando injeção, mas a vida era melhor. Dava para comer melhor. Em Conceição era tudo com farinha: mortadela, quitutes… (risos).
Em três anos, o pai juntou dinheiro e mandou a família de volta para Coité. Aos dez anos, Wallace estudava, vendia picolés escondido para ter seu “salário”, e, apesar do desejo paterno de que servisse às Forças Armadas, jogava bola. Como meia-esquerda. Assim, num campeonato regional de futsal, chamou atenção de um olheiro que quis levá-lo para o Vitória. E Wallace partiu, aos prantos, para mais uma etapa inacreditável de sua vida.
Dentro de campo, poucos percalços: a falta de habilidade fez com que o meia virasse volante, depois zagueiro. Problemas supridos pela força de vontade. Fora de campo, um problema: a paixão por Jéssica, morena de olhos rasgados, surgiu de uma brincadeira de mau gosto da moça com a “beleza” de Wallace.
– Eu estava num ponto de ônibus com meu amigo. Como eu era feio, pobre e magro, ela passou por mim e disse: “Oi, gatinho!”. Eu me apaixonei (risos). Voltei no outro dia, falei com ela, saímos. Eu nunca havia beijado ninguém. Não sabia o que fazer, ela saiu correndo e me deixou sozinho no beco. Ficamos um mês sem nos falarmos, mas meu amigo a levou num jogo e arranquei um beijo dela. Nunca mais nos desgrudamos. Até hoje, só beijei minha esposa.
Wallace tinha 16 anos. Jéssica, 17. E ela engravidou. O que fazer? O zagueiro adolescente ganhava 300 reais por mês no Vitória, mas estava há seis meses sem receber. Morava no alojamento com outros tantos garotos. A solução teve requintes de coronelismo, pois ele se viu obrigado pelas lições familiares a se casar, e criatividade. Muita criatividade.
Ele se mudou para a casa dos sogros, onde foi bem acolhido, diga-se de passagem, e resolveu economizar no que era possível. No ônibus, por exemplo. Eis que veio a ideia mais maluca, literalmente, de todas. Ele jura ter sido de Jéssica, que não estava presente na entrevista para se defender, e conta às gargalhadas.
– Eram três ônibus para ir ao treino e três para voltar. Comecei a vender o vale-transporte para tentar comprar o enxoval, e minha esposa, extremamente maquiavélica, bolou um jeito de eu não pagar o ônibus: você vai fazer uma carteira de maluco e entrar como deficiente físico. Fiz uma foto com a cabeça raspada, deixava a barba mal feita e entrava babando, mancando. Batia na porta do ônibus e me fingia de mudo. Foram seis meses assim, até que um policial me abordou e confiscou.
Como nada na vida de Wallace era normal, o casamento no cartório também teve sua peculiaridade. Jéssica se atrasou, e, na fila de casais, quem passou de banco a banco ao lado do zagueiro, até o último, foi o padrinho, sob olhares desconfiados. Quando a noiva chegou, corria o boato de um casamento homossexual. Ela esclareceu as coisas, eles trocaram alianças e, cansados de viverem com os pais da jovem, mudaram-se com o pequeno Lucas para uma casa próxima ao Barradão, estádio do Vitória. Tudo para economizar.
Enquanto as maluquices fora do gramado se acumulavam, Wallace fazia amizades e parcerias interessantes no time. Uma delas com David Luiz, zagueiro que vai reencontrar no Mundial de Clubes, agora no Chelsea. Mundial? Como o garoto de Conceição do Coité poderia imaginar que chegaria ao Japão? Tudo graças a um telefonema de seu empresário quando ele passava férias em Fortaleza, no fim de 2010, ao lado de outro zagueiro amigo de categorias de base, Anderson Martins.
Wallace havia acertado com o Palmeiras, uma proposta financeiramente muito melhor, inclusive, mas o clube paulista não se entendeu com o Vitória, e abriu as portas para o rival. Um prêmio à sua dedicação, palavra que escolheu para resumir sua cinematográfica trajetória.
– Não dei certo no futebol por talento ou por ser melhor do que os outros. Estive em listas de dispensa em todos os anos na base, mas se mandavam dar dez voltas no campo, eu dava onze. Sempre trabalhei para filtrar minhas deficiências. Temos muitas limitações, e mania de responsabilizar os outros por isso. Nunca vi a vida dessa forma.
Lembram-se de quando Wallace disse que não se emocionava mais? Há uma ressalva. Antes de terminar a entrevista, que revelou uma pessoa muito mais adorável do que ele mesmo se anunciou, o zagueiro “durão” contou como o filho Lucas, hoje aos sete anos, consegue desmanchá-lo. O mesmo filho que o fez ser louco de carteirinha.
– Às vezes estou na cama, nem estou triste, mas ele chega e diz: “Pai, não fique triste porque eu te amo”. Não tem como não se comover. É a única coisa que me faz chorar. Tenho dificuldade de expressar meu sentimento, mas quem me conhece sabe interpretar meu semblante.